O pai do Tenente Blueberry foi um dos maiores desenhadores de BD da sua geração. Vegetariano, andou numa seita que queria falar com extraterrestres e inspirou o cyberpunk e nomes como Jean-Paul Gaultier ou Miyazaki.
No sábado de manhã, dia 10 de março, num hospital de Paris, morreram de cancro Jean Giraud, Gir e Moebius. Tinham 73 anos, e o facto de serem a mesma pessoa apenas toma o óbito mais doloroso. Gir e Moebius eram as alcunhas artísticas de Jean Giraud, um homem gentil e cheio de humor. Giraud era também um dos maiores desenhadores da sua geração e um dos grandes artistas plásticos dos últimos dois séculos - Federico Fellini considerava-o "um criador da dimensão de Picasso". Da veia humorística dava conta outro autor de banda desenhada (BD), François Boucq, que o visitara há 15 dias no hospital, atestando as gargalhadas que o amigo suscitava nas enfermeiras. Estava doente há dois anos.
Como é comum nos predestinados, nada faz prever tanto risco. Jean é um miúdo como milhares dos subúrbios parisienses, nascido a 8 de Maio de 1938, de famílias modestas. Os pais divorciam-se quando tem 3 anos. É educado pelos avós paternos. Entra para a École des Arts Appliqués em 1954. Torna-se extrovertido aos 15 anos, quando a mãe o vai buscar, levando-o a um universo paralelo: o México. Aí, Jean descobre o jazz, os rituais xamânicos, a marijuana e, mais importante, o sexo. A proximidade do Oeste americano fica-lhe na cabeça. Regressa nove meses depois, para a recruta em França e a guerra na Argélia. Custa-lhe largar o lápis (acha-o uma arma mais eficaz do que a metralhadora). Torna-se aluno de Jijé, da grande escola de BD franco-belga. Começa a trabalhar para a revista Spirou, assiste o mestre e transforma-se em Giraud.
Em 1963, cria nas páginas da Pilote a sua visão do Oeste, Forte Navajo: Giraud converte-se em Gir. As aventuras do Tenente Blueberry, militar sulista amigo dos índios, estilhaçam as regras psicológicas da BD clássica - Blueberry é um sonhador capaz da pontual atrocidade -, trazendo um cunho seco e violento a uma arte domesticada. Mas isso não lhe chega. Viajando mais pelas drogas - experimenta cogumelos alucinogénicos -, lança em 1975, com Philippe Druillet, a revista que inaugurará a BD adulta, a Métal Hurlant: nasce Moebius.
Em 1978 conhece o chileno Alejandro Jodorowsky, realizador de filmes de culto alucinados como El Topo. A linha transcendental esmaga o realismo, e Moebius inventa A Garagem Hermética e, com Jodorowsky, a saga do Incal. A pintura do Quattrocento funde-se com a poética do inconsciente. O público jovem adora. Torna-se vegetariano - afinal, a canábis é uma planta - e deixa de beber álcool. O gosto pelos mundos paralelos continua: chega a ingressar na seita Izo Zen, cujo líder procura estabelecer contacto com extraterrestres, ignorando que, com Giraud, já tinha um nas suas fileiras. Marcado por temas como a genética ou a ambiguidade sexual, a sua herança está por todo o lado, da moda de Jean-Paul Gaultier ao cyberpunk, da animação do mestre Hayao Miyazaki ao cinema de Ridley Scott, James Cameron e Luc Besson (foi conselheiro artístico de Alien, Trone O Abismo).
O último trabalho importante de Jean Henri Gaston Giraud (seu verdadeiro nome) surge em 1988, quando é convidado a reinterpretar O Surfista Prateado, viajante das estrelas, para o patriarca dos comics americanos, Stan Lee. A personagem torna-se dele - torna-se ele? Nos últimos anos, dedica-se a Inside Moebius, um work in progress com a companheira de muitos anos, Isabelle. É um auto-retrato cheio do habitual humor, de uma intocável espiritualidade. Planeava retomar a série do Tenente Blueberry, e quando morreu concebia uma curta-metragem a partir de Os Mundos de Edena. Dedica-se agora em full-time ao surf celestial.
Fonte: SANTOS, Pedro Marta - Jean Giraud "Moebius" (1938-2012). Sábado nº 411 (15 de março de 2012), p.29.
Agradecimento by Gizmo (Blog Tralhas Várias)
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